Meu tamanho

eu sou do tamanho dos meus sonhos desesperados por algum senso de realidade fantástica que me faça saltar sem paraquedas de mim mesmo

porque os sonhos estão presos ao ar que respiro, ao meu nariz, ao meu pé, ao meu olho direito, a minha dor por tê-los presos a tudo e me sentir presa neles

porque os sonhos são um estado de espírito o que me faz não ser concreta, mas uma manifestação ilusória de algum fanatismo poético das minhas pulsões  

pulsões que nada são além de sonhos 

eu então busco uma dose de vinho, qualquer vinho fudido de qualquer esquina que me atraia pelas luzes amarelas e pelo humor horrendo da vida moderna capaz de me fazer parir os verbos

para enfim poder declamar a poesia da qual sou feita e então provar que sei viver sem saber de nada sobre a gênese surreal de tudo que tenho e de tudo que importa, a vida 

sou prodigamente inexistente. penso e sonho e, por isso, inexisto nos tempos passado presente e futuro porque minha insatisfação ingratamente egoísta sufoca qualquer possibilidade de eu ser algo além de nada ou ser algo além de um tudo passageiro 

violentamente destruo qualquer base racional que qualquer gênio contruiu por escadas humanas que ligam nada à nada 

vivendo por não ser nada e nada nunca ser. 

Andreza Silva

Quer que eu diga? Direi






Não estou interessada porque não tenho corpo para comprar isso, não tenho coração para suportar lágrima e dor. Eu já disse umas cinco vezes a você: eu sou feliz. Isso, feliz. Até nos momentos mais complicados em que ouço meus batimentos altos e minha voz se cala, eu sou feliz: algo vai aparecer e eu vou sair viva, forte. Já você chora por tudo, sofre por tudo e seu mundo se acaba com uma frequência absurda. Eu junto seus cacos, a esculpo, mas qualquer garoa a destrói. Eu me corto toda vez que resolvo ajudar você. Eu sei, você sabe. Iai? Como fica? Eu não quero viver morta. 
Sofrer não é bonito, é penoso, e eu não sou de sentir pena.

Andreza Silva

A vida em retratos: o fenômeno secular dos selfies

O mundo pós-moderno valoriza o individualismo como expressão imperativa da vida social. Dessa forma, a expressão do 'eu' ocupa o lugar progressivamente de debates que envolvam questões sociais e de comunidade. A exteriorização do 'eu' é o cerne das relações interpessoais e ao mesmo tempo contrário a elas, visto que o egoísmo e o narcisismo não debatem, mas dialogam verticalmente. Ou seja, o indivíduo não espera algum tipo de discussão aprofundada acerca do seu 'eu compartilhado', ele espera simplesmente nutrientes que continuem a alimentar seu ego narcísico - os elogios. Em consequência, tem-se um loop infinito no qual o 'eu' real rende-se ao 'eu compartilhado' para satisfazer sua mediocridade e superficialidade crítica, para satisfazer a falta de Ser, enfim, para auto promover-se em um mundo que valoriza holofotes e efeitos mais do que o espetáculo da vida real.

O fenômeno dos selfies não é algo próprio dos últimos anos. A denominação sim, mas não o fenômeno. Tal fenômeno nasce quando os modelos ecônomicos deixam de ser meramente métodos restritos à esfera quantitativa de organização das contas públicas e passam a ser um estilo de vida no qual rege, não somente a vida social, como as relações entre pessoas. Dessa forma, pode-se visualizar, especialmente a partir do capitalismo financeiro e, recente, da emergência do neoliberalismo, que as relações de compra e venda não são somente de bens materiais, mas de afetos - como afirma o pensador contemporâneo, Vladimir Safatle. O 'eu' vende uma representação de si - o ‘eu compartilhado’ - em troca de emprego, de aumento salarial, de fama. Dessa forma, "investir" deixa de ser um vocábulo e uma ação  circular à economia e passa também a gerir a vida individual. Investe-se na bolsa de valores e investe-se em romances. Investe-se, não na educação, mas na capacidade do 'eu potencial’ aprender. Como todo investimento procura resultados, lucro, beneses, algo superior a situação antecedente; no investimento em si próprio, isso não muda. Inconsciente e conscientemente, o 'eu' pós-moderno promove-se a todo o tempo procurando no outro a legitimação dessa promoção. Assim, o selfie propriamente dito, a foto de si mesmo, é o fenômeno concreto do que já ocorre desde o final século XIX. Esse retrato de si é, na verdade, retrato de um investimento. Investimento este em que o 'eu potencial’ deseja Ser em um mundo que Ser pouco importa comparado a aparecer. Aparecer importa mais porque é a essência do modelo de vida vigente - é necessário criar e reinventar constantemente formas rentáveis de ser feliz: como o novo carro, a novo celular etc, de modo que é fundamental o que o ‘eu’ mostra Ter. De modo que sempre os objetos essenciais da venda sejam a possibilidade de ser celebridade e o individualismo (faminto de espaço). Assim, os selfies são retratos de investimentos em que o 'eu potencial' deseja Ser estrela, como promete as inúmeras publicidades.


O problema de tudo isso é que é impossível Ser algo no mundo pós-moderno. A sua essência, em termos Baumaniano, é líquida. Nada é fixo. Assim, nunca serão suficientes os auto investimentos. Nunca serão suficientes as fotos no instagram, facebook e afins. Nunca será suficiente a academia dois dias na semana mais o shake. Nunca será suficiente o salário. Nunca será suficiente a casa de praia. Nunca será suficiente o carro do modelo do ano anterior. Sem perceber, nunca será suficiente a vida.

Nessa busca constantemente por Ser algo cada vez mais distante e amorfo (na perspectiva do 'eu receptor’), o 'eu real' arrefece e morre. O 'eu' compartilhado vive sem se viver. Os holofotes iluminam o palco vazio. Não há peça nem história nem Ser. E nem público, pois todos que poderiam assistir a degradação do índivíduo estão sendo protagonistas da própria miséria.

Suicídio


Acordou com um sorriso na cara borrada de maquiagem e desespero. Saiu do quarto apertado e foi para o banheiro, maior que seu quarto, sorriu novamente para a privada como se ela fosse tirar dela um peso enorme, um peso. A urina cai, bem amarela e fedorenta, em dez segundos. Só?. Helena esperava bem mais que isso, ela queria se sentir leve como tudo na sua vida. Pessoas leves, trabalhos leves, desejos leves, amores leves, alegria leve, afinal, no final tudo escapa escorrendo entre os dedos para um outro universo além de Helena. Miserável. Deprimente. E seu mundo, pequeno e frágil, pesa, mas Helena é muda como o H que inicia seu nome e não consegue gritar, cantar uma canção de amor, soletrar V-I-D-A, gemer quando é pra gemer. E nada sai. Nada sai. A urina sai, mas não é suficiente, porque não pesa. E o que Helena precisa é ser leve. Helena, seja leve! Mas ela parece não me ouvir. Helena, sinta amor! Mas, só pesa e esse peso é de dor, sofrimento e pior, culpa. Você não tem culpa, Helena. Pense na dor como algo passado, não como presente e futuro. Ame!
Helena sorri de novo, mas nada. Nada sai. Ela se levanta da privada decepcionada. Escova os dentes como se estivesse fazendo sexo oral. Nada. Nenhum prazer. Caminha e se pergunta porque que a vida é assim. Ela não entende que somos humanos. Soletre: H-U-M-A-N-O-S. Helena pensa que a única forma de acabar com essa dor é pela morte. Ela quer morrer porque assim o único peso que sua imagem carregará será o do próprio assassinato. Assassina. Morte suja. Helena, ame! Ela pisa nos cacos do copo ao lado da cama e cai sobre ela: “Por que, meu Deus, eu sofro?” Como se só ela sofresse. Busque a si, se ame. Helena não sabe o que é vida e esquece que somos humanos. Sofrer é parte do bolo, mas não deixe o bolo pesar. Coma o bolo, digira, mande para o estômago, mande para o intestino delgado, deixe seguir para o grosso e ai sim, sente na privada, querida. Se sentirá leve. Não haverá culpa nem peso. A culpa não pode ser um fardo, mas uma memória. Um aprendizado. Uma esperança. Um álbum de fotografias. Um corte na perna. Mas, nunca um peso. O peso faz não querer viver. É a negação da vida. É suicídio da humanidade. É loucura. Não morra, porque você pode amar, Helena.
Helena, volte a dormir e sonhe com seus pingos de felicidades e sorria novamente, mas de verdade.
Andreza Silva 

Fundamental preto e branco


O menino em seu quarto conta através da janela embaçada as estrelas no céu. Elas não parecem infinitamente distantes como o pai falou. O garoto pensa que com um avião ou um helicóptero as alcançaria, tocaria e se conseguisse de alguma forma levaria uma para sua vó. Depois os dedos miúdos deslizaram sobre o vidro embaçado e surgiu um avião deformado com uma asa maior. Já era para estar dormindo, há meia hora como aconselhou seu pai, mas a chuva e as estrelas o puxaram do sono e o trouxeram para sonhar acordado. 


Os sonhos eram nada mais nada menos que reflexo da criança: simples (pode-se chamar um sonho de simples?) e singelo. Queria conseguir todas as bolinhas de gude da vizinhança, construir um carrinho de rolimã com seu pai (que nunca tinha tempo), viajar de avião para alcançar as estrelas e por fim, ser o capitão do time de futebol do bairro. Com todos os sonhos mais inteligentes do mundo, como dizia, contava as estrelas e planejava como realizá-los. Passou um tempo e o menino dormiu. 



Passou-se 21 anos e o homem que o menino se tornou continua a olhar pela janela embaçada. Mas não conta estrelas e nem tem sonhos. E sim, as estrelas são infinitamente distantes agora. Dormir não tem horário. E vive-se sem motivo. O homem que o menino se tornou não ver nada através da janela. Suas visões distorcidas são resultado da sua elevada consciência. Não sabendo ele, que a perda da razão é nada mais que o excesso dela. 



Você leitor, lembra quando o mar ganhou tamanho? Quando o Sol ganhou distância? Quando descobriu que as flores não são tão cheirosas e que o arco-íris pode ser explicado? Onde você está? Na caverna?



Corremos atrás das respostas. E quando não houver mais perguntas? E se o grande sentido da vida for sua falta de respostas? Bom, eu não sei. 

Mas reinvente, redesenhe, redefina, reconte, recrie, reviva seu mundo a cada dia, para que ele não se reduza a um fundamental preto e branco.

Andreza Silva

Não quero ser mulher


Distraidamente olho para a vitrine da loja de roupas masculinas importadas. O manequim toma quase a vitrine inteira e os olhares de muitos homens que desejam o conjunto vestido. Ele veste Black Tie ou como vem em convites de casamento, traje a rigor. A calça preta acetinada dos lados e o paletó de lapeta despertam em mim um desejo de usar aquele modelo de gala. Seguido por uma camisa branca com pregas na frente, o smoking efetivamente chama minha atenção o que faz a vendedora sair da loja com um sorriso no rosto e extrema delicadeza: "Posso ajudá-la, senhora? É para seu marido, irmão?". Como um acidente de um caminhão com uma bicicleta o impacto daquela pergunta foi brutal sobre mim. De repente notei que não me sentia confortável com aquele salto de 7 cm e o vestido curto, decotado, e florido. De repente notei que não gostava de batom e que minha atração por mulheres não era algo que 'com o tempo passa'. 

A mulher ainda com um sorriso escandaloso na cara trouxe-me de volta a ela: "Senhora?". Eu ainda perplexa por ter me encontrado em uma vitrine de luxo e em um sorriso falso respondi automaticamente: "Não, para mim, será que tem meu número?". Os dentes brancos da vendedora sumiram imediatamente de minha visão e com olhos esbugalhados meio sem jeito diante de uma mulher que queria ser homem, balançou a cabeça tentando disfarçar seu espanto e caminhou pelo corredor da loja me perguntando sobre cores, pregas, cetim ou seda. Disse a ela que queria o traje exatamente como o do manequim e assim ela conseguiu. Tinha meu número. 

Entrei no vestuário, vesti o conjunto Black Tie que caiu muito bem em mim. Estava pela primeira vez me sentindo confortavelmente e verdadeiramente bonita. Viajava nos pensamentos sobre roupas masculinas e planejava um penteado novo para o cabelo, quando a vendedora interrompeu-me perguntando se era para um casamento. Não era, era para os quinze anos de minha filha. Ela entenderia que sua mãe não quer ser mulher? E meu marido entenderia que não o amava de verdade? Provavelmente não. Provavelmente Estela chorará, Alberto ficará revoltado e provavelmente não terá festa, mas vou comprar mesmo assim. O que posso fazer se aparência não é tudo? Escondi-me de mim por todo esse tempo porque achei que existia um jeito certo de se viver e quando sentia vontade de quebrar esse padrão era só respirar e pensar 'com o tempo tudo passa'. E de repente não passou. E de repente como um caminhão batendo com uma bicicleta, meu de repente ocorreu. Eu morri e nasci em mim. Sempre quis ser homem. Percebi distraidamente que não passo enquanto vivo e o tempo não muda o que é. Não quero ser mulher.

Abri a cortina e a vendedora me elogiou. Obrigada, eu disse, seu sorriso também me encantou. 

Andreza S.